A cabeça elabora os sentidos da alma...
C alma, andré nunes 2017
A gente se
empresta como suporte para o outro, não como uma folha em branco mas sim como
algo moldável a partir de todas as experiências que tivemos em vida nas
relações. Seja o corpo na lida diária do por fazer e do feito, nas emoções do
sorrir ao ranger de dentes ou ainda nos pensamentos e raciocínios sempre em
livres tormentas pra onde a loucura nos leva e nos traz, o fato é que tudo isso
é bastante complexo por envolver aspectos biológicos, psicológicos, sociais e
culturais. Não é um labor fácil cuidar de pessoas que tem sérios
comprometimentos na vida. Pessoas que padecem de sofrimentos psíquicos e
físicos de gravidade relevante.
De alguma
maneira a gente é arrastado por correntezas muitas vezes inconscientes forjando
em nossas consciências tantas dúvidas quanto respostas nas relações. Nesse
movimento todo um lugar de paragem é necessário, nesse lugar somos conduzidos a
ocupar aquilo que também carrega o nome de morada. Nessa morada abrigamos...
O morar com
eles é algo que demanda visão complexa sobre os atos e fatos desenrolados no
conviver junto sobre o mesmo teto e presença. No mundo minúsculo do dentro de
si e do dentro da casa o ser no mundo de cada um aparece naquilo que chamamos
de intimidade, dando a nós vestígios de uma estrutura maiúscula externa. É
sempre uma troca e nesse balanço nada ritmado entre dentro-fora a gente se
depara com o que vivem as pessoas, seus modos singulares de pertencer ao
prosaico cotidiano e suas perspectivas. Nessa labuta a gente também se
reinventa, mas há sempre um rastro ligando o que era ontem ao que se é hoje,
aonde se estava e aonde há porvir, numa tessitura languida de se fazer parte
nesse e desse recanto do mundo.
Nesse ensaio, que inicio em partes, quero contar um pouco do que venho tentando desenvolver no último ano em meu
trabalho de supervisor de dois serviços residenciais terapêuticos localizados
num bairro periférico da megalópole paulistana. Borda onde fora e dentro
sufocam-se sem muito transpirar, margens refreadas na pobreza de ofertas do
bairro e sua acessibilidade comprometida por barreiras arquitetônicas e
atitudinais, onde o crime organiza saídas à vida de alguns mas onde a luta de
classe faz dormir ao cair do dia gente que carrega o piano e a caixa enquanto
trabalhadores. A Brasilândia é um resumo do Brasil que se virou por conta
própria, foi se fazendo em amontoados de casas ladeira abaixo e acima.
Ocupações no mais clássico retrato das condições esquecidas de políticas
públicas e das que vingaram conquistadas a base de muita luta.
As casas que
abrigam os serviços são sobrados de
relativo espaço e conforto. Na mesma rua são vizinhas de quarteirão. Uma
com 9 anos de existência e outra com 1 ano e 10 meses. Nelas habitam e coabitam moradores e acompanhantes, personagens centrais nessa trama do comum, sendo elas cenários
contextualizantes daquilo que se teima em chamar na Re- Habilitação
Psicossocial de Habitat.
Antes de prosseguir é necessário dar conta de
um verbo guarda-chuva pra essa forma de cuidado. O verbo MORAR aqui conjugado
abre sua porta para que nele se aloje uma pergunta anterior: O QUE É UMA CASA?
Para essa pergunta primeira recorrerei a obra de Gaston Bachelard: A POÉTICA DO
ESPAÇO, numa tentativa de ampliar o conceito do que posteriormente possamos
definir como MORAR.
"A casa é nosso
canto no mundo, onde nos enraizamos na construção de nosso primeiro universo.
Algo da ordem da primitividade humana onde quem a pertence aceita sonhar. Nela
são revelados valores do espaço habitado por um não-eu que protege o eu. Com
ela aprendemos que todo lugar habitado pelas pessoas traz em sua essência a
noção de casa. Lugar central onde se encontra abrigo e imagina-se seus limites,
pensamentos e sonhos. A casa é sempre uma forma onde o devaneio e o onírico
podem aparecer nos aposentos. A casa comporta em si nossas relações
imemoriáveis enquanto espécie com o fogo, a água, as luzes, a escuridão, onde
memórias e imaginação não se separam. A casa não vive só do dia-a-dia, mas
também carrega nosso curso na história guardando tesouros de dias antigos e
coisas construídas que se materializam em cada objeto trazido para dentro de
seu interior. A casa está intimamente ligada ao Pais da Infância Imóvel, onde
vivemos fixações de felicidades nas relações e lembranças de proteção e
aconchego. As lembranças do mundo exterior nunca têm o mesmo tom que as
lembranças vividas no interior de uma casa, porque às lembranças da casa
adicionamos sonhos. A casa abriga o devaneio de nossas criações, protege o
sonhador, permite sonhar em paz. A casa é uma das maiores forças de integração
para os pensamentos, as lembranças e os sonhos das pessoas.
O passado, o
presente e o futuro dão a casa dinamismos diferentes que se interferem, as
vezes se opõem, as vezes se excitam. A casa afasta contingencias e multiplica
desejos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantem o
homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e é
alma. É o primeiro mundo do ser humano. Antes dele ser jogado no mundo a casa é
o lugar que ele é colocado no berço. Ela é um grande berço, sendo esse um
grande valor ao qual voltamos nos nossos devaneios. É o lugar onde a vida
começa bem, começa fechada, protegida, participa do calor inicial, agasalhado
no regaço da casa. A casa mantem e remonta nossas origens, faz-nos lembrar da casa natal como uma
espécie de Infancia imóvel em seus braços."
Local de nossa
vida íntima, muito próxima da alma, onde o espaço retem o tempo comprimindo-o em objetos, utensílios,
relações. É essa a função do espaço reter o tempo comprimido. É ela que permite
vivermos nossas primeiras solidões, em seus cantos e cômodos. E todos os
espaços das nossas solidões passadas, os espaços em que sofremos a solidão,
desfrutamos a solidão, desejamos a solidão, são indeléveis em nós. Assim como o
tédio, é na casa que experimentamos essa sensação pela primeira vez. "
Por fim é ela quem traz o ser
para dentro de si mesmo, aquieta para depois mover. Parte importante do repouso
no caminho. É ela que devolve ao ser a energia de uma origem com valores de
intimidade e bem estar na vida. A casa, alma e o corpo agrupam uma série de hábitos orgânicos.
Comentários